Levantar todo o dia pode ter um gostinho diferente. Quando éramos criança tinha gosto de chocolate antes de aniversários, jogos da selação, final de semana na praia, primeiro e último dia de aula etc. Gosto de jiló (ou quiabo!) em véspera de prova, trabalho, entrega de boletim, último dia de praia etc.
Estamos mais maduros mas os gostos continuam. Ao menos agora sabemos o que é final de semana - para as crianças este conceito não existe. Existe apenas o aula e o não-aula - e que ele tem um gosto melhor do que a semana de trabalho. A Argentina colocou jiló na nossa boca e levantar no dia dos namorados dando bom dia para o travesseiro definitivamente não tem gosto bom.
As coisas não precisam de tanta amargura na boca. Existem umas poucas pessoas que têm o dom de fazer o chocolate aparecer. Elas definitivamente não são gente como a gente. Não falo aqui de homens ou mulheres no sentido sexual da palavra. Mas aquelas pessoas de quem o maior desejo é a conversa. Almoçando encontrei o Sr. Danel. Argentino. Simpático. Humilde. Educado, por vezes até desconfio que tenha me mentido a nacionalidade. Senhor de sorriso franco, forte sotaque castelhano, um tanto quanto calvo (me perdôe Daniel!) e de uma incomensurável vontade de viver. Escapou de dois processos cancerígenos. Está paulatinamente perdendo a visão, mas o que ele já enxergou na vida só não é maior do que ainda enxerga com sua alma. O chocolate aparece só de ouvir sua voz, sua alegria de vida e sua sabedoria. Fico imerso ouvindo tudo o que ele diz. De bobagens a coisas sérias. Regadas com muita cerveja. Como ele mesmo diz: "Quando tinha 24 anos comprei um carro de último estilo e quase morri quando bati bêbado. Naquele momento percebi que álcool e direção não combinavam. Nunca mais dirigi!"
Estava eu me lamentando por estar sozinho em um tedioso final de semana. Sendo "Valentine's day" (embora a data não feche o sentido sim) tanto pior. Ele me relatou entre sorrisos despachados e goles gulosos que sua querida esposa, Dona Maria, com quem está casado a mais de quarenta anos estava em Miami. Num casamento e voltaria apenas sábado. Ela é a âncora da vida dele. Daqueles casais que, não conhecendo nada mais que sua vida pública, diríamos são perfeitos um para o outro. Segundo ele próprio, a relação se baseia no princípio de que em casa ele é que manda ... quando ela não está!.
Do alto de minha sabedoria de 27 anos brinquei dizendo que afinal ele podia passar o dia dos namorados sem a "patroa" e dei uma sonora gargalhada. Ele sorveu mais um gole de sua amada cerveja e de uma altura que eu nunca poderei perceber retrucou: "É uma maravilha ficar sozinho com 30 mas não com 75!" O chocolate derretia em minha boca e a única coisa que queria era continuar sentindo aquele gosto maravilhoso. Estou feliz. Só. Mas feliz por perceber que a companhia do Sr. Daniel talvez tenha sido a melhor do mundo hoje. Espero ao menos ter devolvido um pouco do bem que me fez ouví-lo.
Meu saudoso avô dizia que a experiência é um carro com os faróis voltados para trás. Nunca consegue iluminar perfeitamente para frente. E dizia que devíamos fazer uma petição ao chefe do mundo, criador de tudo, para que nascêssemos velhos, sabendo de tudo, e fôssemos ficando mais jovens. Para ele a companhia das crianças a um velho era a troca desigual mas perfeita entre a força de um sorriso e o carinho de um abraço. Espero que meu sorriso tenha sido o suficiente para o Sr. Daniel como era para meu avô. Outro, aliás, que não era gente como a gente.
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Um comentário:
É quando encontramos pessoas assim, o gosto do chocolate na boca é inevitável......
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