quinta-feira, dezembro 29, 2005

Doppler

Hora das famigeradas retrospectivas. Nada mais chato do que retrospectiva. Erros que não podem ser desfeitos e alegrias que se esfumaçaram com o tempo. Aliás, ele é senhor de tudo. O tempo.
Longe de ser absoluto o tempo é um senhor relativo. Existem duas formas básicas de relativá-lo, uma baseando-se na distância do observador. Outra baseando-se no impacto de sua passagem.
O primeiro efeito é como um "efeito Doppler" do tempo. Quanto mais perto estamos mais defeitos vemos, quanto mais longe mais qualidades. Idealização histórica. Tudo o que nos é distante parece perfeito. Acho que por isso dizemos que as qualidades são sempre maiores que os defeitos. À distância as qualidades permanecem e os defeitos se esvaem. Não pense que isso é bom. Esse efeito causa saudade e arrependimento de coisas que não existem. Certamente não existem situações ou pessoas só com qualidades, mas acho que o cérebro acaba fazendo uma seleção do que vale a pena manter guardado. Ficam as boas. Não o culpo. O condeno.
Assim fazemos com os anos que se passaram. O 1980 foi melhor que o 1990. Doppler.
Verdade? Não, apenas efeito.
Assim fazemos com as pessoas que passaram. Essência travestida de saudade. Pessoas fantasiadas de sonhos.
O contrário também é verdadeiro. Quanto mais próximas as coisas mais nos é permitido focar os defeitos. 2005 foi horrível. Quem sabe daqui a 50 anos ele fique palatável?
Com as pessoas somos mais cruéis. O tempo passa as pessoas não. As pessoas definham ...
A crueldade é, portanto, maior. Tão maior quanto os defeitos nos parecem. Não me recordo dos defeitos das pessoas que me são distantes. Isso aumenta a saudade. Idealização em vinho e vela.
A segunda forma de relativizar o tempo é através dos seus efeitos. Uma espécie de eco temporal. Pensamos em perceber a passagem do tempo como algo total. Como se não retornasse. Negamos a transitoriedade do ser e a passamos ao tempo. Como se a ação fosse estritamente do que se passa para o que se sente. Viver não é uma sucessão de momentos e sim uma sucessão de impressões. Marcas indeléveis da violência da vida não são as rugas e sim as memórias. "O essencial é invisível aos olhos". Temos o anseio de que as memórias não se repitam. Como se pudéssemos afastar tudo o que dói. Usamos o tempo para isso. Travestimos de experiência os ecos do tempo. E ainda que não compreendamos seus sentido tentamos mudar o que vai acontecer fugindo do que aconteçeu. Nâo percebemos que a lineraridade temporal transpassa o nosso translúcido ser e nunca vamos fazer as mesmas coisas. Somos dia-a-dia diferentes. Dia-a-dia morremos um pouco e compreendemos isso de diversas formas. Também ouvimos ecos do que nunca aconteçeu. Forma uma melancólica sinfonia cujos acordes principais são uma mistura de imaginação com idealização. O final é saudade.
O mais interessante disso é que nos enganamos todos os anos pensando que esse ciclo pode, de alguma forma, ser definido externamente. Cor, cheiro, comida, companhia. Como se algo pudesse transitar entre o ecos e mudar a sinfonia.
Bem vindo 2006!

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