terça-feira, maio 02, 2006

Perfume de vida

O que nos leva a seguir adiante? Lembro-me de quando pequeno perguntar isso, de manhã, a mim mesmo. Na época um jogo da seleção, uma festa no final de semana ou um filme fartamente anunciado na mídia me davam a resposta. Eu, mesmo naquela idade, sabia ser isso totalmente infantil e imaginava que, quando adulto, eu teria outros motivos para levantar de manhã. As coisas mudaram. Hoje levanto de manhã por um happy-hour com os amigos, para secar o time contrário ao meu, mesmo que o meu não jogue, para ver com quem o Ben Silver vai terminar, ou muitas vezes por inércia. Em essência, acho que os motivos da minha infância eram muito mais profundos e que hoje eu sou um tanto mais bobo do que fora naquela época.
Entretanto, me preocupo mais pelo "porvir". Moro com minha avó e penso no porquê dela levantar. Oitenta e quatro anos, dificuldade para caminhar, incontinência urinária, dentadura em cima e em baixo, grave problema de audição e cega de um olho. De quebra, diabética. Ela me fala, de vez em quando, no sofá para a sala que, quando ela comprar, vai ser de tal forma e de tal cor. "E eu me pego pensando: que mundo maravilhoso ..."
Ela pergunta se eu tenho algo para ela arrumar, roupas para costurar dizendo que ainda não pode porque está doente mas que é para eu deixar na mesinha dela que assim que melhorar ela faz. E eu vejo como ela fala disso sem pensar no caminho terminando. Como ela pensa que realmente isso pode acontecer e como, para ela, VAI acontecer.
Hoje ela começou a me perguntar por que não voltavamos a morar em Porto Alegre? Segundo ela, morar em Caxias é ruim porque é frio. Estamos em Porto Alegre e ela mora na mesma casa a quase trinta anos. No início me preocupei de ela estar ficando senil. Agora entendo como isso pode ser uma bênção. Provavelmente sã ela não aguentasse esperar que alguém a desse banho. Provavelmente sã ela não suportasse levantar no meio de pessoas se urinando toda sem com isso se importar. Provavelmente sã ela entendesse que os estofados nunca serão comprados e as calças nunca serão serzidas. Provavelmente sã ela já teria se entregue ao rigor da vida e o brilho infantil que ainda vejo em seus olhos fosse apenas uma suposição nossa no seu velório.
Essa tênue transgressão que ela tem realizado daquilo que entendemos por realidade é um lençol de seda que embala o corpo são dela e aconchega o seu espírito cansado. O corpo que ela pensa ter e o espírito que ela sente ter. Não tenho o direito de retirar isso dela. Nem que para isso eu tenha que selar cartas com o endereço do remetente errado ...

2 comentários:

Anônimo disse...

Às vezes me pergunto "O que faz alguém seguir adiante?" quando vejo um mendigo na rua, um doente terminal, um menor ou maior abandonado...Pergunto-me por quê se agarram de tal maneira a vida e continuam a andar sem grande certeza do que virá? Por quê ainda amam a vida se ela fora tão ingrata? Por que amam as pessoas se elas agem com indiferença? Por que acreditam no mundo se ele se mostra, muitas vezes, tão cruel? Porque assim como eu, creêm que o amanhã será diferente, que o mundo nem as pessoas são tão más assim e que a vida ainda vale a pena, mesmo quando nos resta apenas um "sopro" de vida, nos agarramos a ele com toda a força e esperança que somos capazes. Desejamos viver sem grande conhecimento do que "viver" representa.
Desprender-se do real é um modo de continuar, assim como a senilidade da tua avó que a faz acreditar que ainda pode fazer o que fizera outrora e viver novamente o que vivera.

Anônimo disse...

Oie.. fazia um tempão q não vinha aqui. Amei este post. Ontem mesmo tava pensando nisso de como não é desesperador ficar velho.. tipo.. a vida tá acabando, tem pouco tempo.. assustador. Este texto e o comentário...
Vocês formam um belo casal!
Beijos com saudades