Era o início dos anos 90 e meu pai tinha passado pelo vestibular ingressando no curso de economia. Tardiamente era verdade, já tinha seus 35 anos, mas muito suado. A faculdade de economia, de início, fez parte da minha vida também. Não porque eu tivesse na época interesse especial pela matéria, mas por eu partilhar um pouco da animação de meu pai. Era contato com um monte de autores renomados, nomes importantes que tinham pensado coisas importantes. Era livro que não acabava mais.
Eu, ainda no segundo grau, por muitas vezes achava aquilo tudo muito entediante. Smith? Hegel? Ricardo? Não, obrigado, já almocei. Os meses se passavam e meu pai insistia, cada dia com um escritor nome, a "bola da vez". Discussões monológicas sobre seus aprendizados, algo em mim sempre ficava. Se era o interesse dele eu não sei, mas com certeza não era do meu. Ficava ali escutando mas não ouvindo. Lembrava apenas de ficar atento às pausas de "Entendeu, filho?" às quais eu respondia "Claro, mas isso não se contrapõe ao outro autor?". Isso era a certeza para ela de que eu prestara à atenção nos dois autores e a garantia de um sorriso aberto e mais duas ou três horas de discussão.
Muitas vezes fazemos isso. Fingimos que a vida não nos machuca. Fingimos que as palavras não nos tocam ou com o desentendimento cínico e pueril ("Ãhh?) ou com uma contraposição fundada na forma e não no conteúdo ("Não vou nem discutir isso."). Assim, o barco vai correndo, a vida vai passando e os estilhaços machucam menos, além de não fazer a felicidade de quem se propõe a ferir. Muitas vezes lutar para desarmar uma bomba é, além de cansativo, muito arriscado. Se não há perigo, afastamo-nos e deixemos detonar. Meu pai falava do que lia e do que aprendia no maior interesse do mundo: passar ao filho. Outras pessoas podem se sentir ameaçadas e assim buscar briga. Lembre de deixar detonar.
Quando eu entrei na faculdade, por ironia do destino todos esses autores voltaram. Me formei em história e todos eles fizeram parte da minha vida. Os ecos do meu pai ainda estavam vivos e, de alguma forma, o destino jogou ao nosso favor. Meu e dele.
De todos os autores que li o velho Karl Marx ainda me traz recordações. Mais-valia, luta de classes, expropriações são ferramentas de aula. Quem sabe por um futuro melhor. Quem sabe ...
Dizia ele, com sapiência incrível, que preço não é igual a valor. E existe o valor de troca e o valor de uso.
Estive pensando nisso. Ciúme, alto valor de uso e baixíssimo valor de troca.
E o barco vai passando ...
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Um comentário:
Miguel,
No seguinte trecho "Isso era a certeza para ela de que eu prestara à atenção nos dois autores e a garantia de um sorriso aberto e mais duas ou três horas de discussão.", creio que você queria dizer ele e não ela.
Bjs
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