Era para mim o último bastião da boa educação. Era como o reduto da civilização, intocável, inabalável, pétreo. Entretanto, percebi como estou antiquado.
Quando criança recebia inúmeros ensinamentos de etiqueta, bons modos. O que era "bonito" e o que não era. Tatu do nariz feio. Baba escorrendo ou fazendo "bolhinha" feio também. Mostrar sorridente o cocô para a mãe, não tem preço! Tudo isso para me transformar no ser humano reconhecido hoje como educado, aliás muito educado. Como cruzar as pernas, "obrigado", "de nada", "com licensa", "bom dia" etc. Deixe os mais velhos sentar, não interrompa quando os outros estão falando (viu mana!), não fale palavrão, como da boca fechada, não repita o que houve. E assim fui crescendo. O desrespeito a uma destas normas era seguro uma carraspana, mas nada de abominável. Tudo dependeria da situação. Em casa, alerta verde. No colégio, alerta amarelo. Em residências desconhecidas, alerta laranja. Em público, vermelhaço! Era necessário que as mães e os pais secretamente competissem sobre os dotes de ensino de cada família. Quanto mais educado os filhos, melhor. Secretamente eles fazem torneios onde levam os filhos para testarem-se mutuamente. A isso eles chamam de "aniversário de crinça" e lá tem a terrível prova do "cachorro quente empapado de molho" e a não menos terrível do "último negrinho". Essas duas, para as crianças, são um divisor de águas.
Lembro-me de um elucidativo diálogo:
A Mãe - Não pode ser amigo dele e pronto!
O Principezinho - Por quê?
A Mãe - Porque ele diz palavrão!
O Principezinho - Mas tu e o pai também dizem e eu sou amigo de vocês ...
A Mãe - Porque ele come de boca aberta!
O principezinho - Mas eu não vou ser amigo dele quando ele estiver comendo. É só quando ele estiver brincando.
A Mãe - Não pode ser amigo, já falei!!
O principezinho - Por queeeeeeÊ??!
A Mãe - Porque ele solta "pum", pronto. Ele solta "pum" na frente de todo mundo.
Acabou. Soltar "pum" na frente dos outros era demais. Ele era um pouco mais que um bixo, parafraseando um grande amigo. Era o limite. Estava feita a negativa da amizade e sustentada com sólido argumento. Ou melhor, gasoso argumento.
Depois o "pum" virou traque. Que virou "cheiroso". Que virou peido e que, mais recentemente, virou flato. Sem, contudo, mudar de essência. Fétida e discriminante em termos sociais. No colégio, segundo grau:
O Colega - Nossa!!! Professor peidaram aqui!! Não dá para aguentar ... vou sair da sala!
O Professor - Não vai não! Quem peidou?
O Colega - Foi ele!
O Príncipe - Não foi eu não! Pára!
O Colega - Foi sim, tá horrível professor. Vou sair!
O Professor - Não vai sozinho. Vão os dois. Quem peidou e quem faz escândalo!!
O Príncipe - Não fui eu!! Tô falando!
O Professor - Não interessa. Fora da sala. Expliquem pra direção depois ...
Justo pelo motivo e injusto porque eu não havia peidado. Sedimentava-se o conceito de ostracismo social através do traque. Meu conceito fechava-se. Peido era motivo de banimento social, ou seja, nunca peide em público. Registrado.
Recentemente os fatos foram outros:
Wally - Foi tu que peidou?
LA - Fui.
Wally - A tá. É que eu ia sair ali para a área para fazer isso ... para não incomodar vocês.
LA - Não precisa não. Faz aí mesmo, não tem problema. É tudo amigo mesmo.
O Príncipe - (boquiaberto assistindo a cena)
Ou seja, o peido é sinônimo de amizade, de proximidade, de coleguismo, de aceitação!
Pior ... Na casa do meu sogro. Com cachorro, sogra, cunhados, periquitos, papagaios, a nona e tudo o mais que se tem direito, todos sentados na frente da TV, de repente:
A moça linda - ÔOO Pai!!!? (Depois de espremido estampido bundal)
O Sogro - O quê?? Foi o cachorro. (Com indisfarçável sarcasmo)
O cachorro - Au, au au. RRRRrrrrrr (Negando a pretensa obviedade da afirmação)
Todo mundo cai na risada, inclusive o sogro. Meu cunhado acompanha o pai na sinfonia número 0 em peido menor, soltando o seu também e me olham.
Indisfarçável a minha vergonha. Inafastável a pressão social pela aceitação. Os olhares ficaram grudados em mim até que com toda a força do meu abdôme consegui um, segundo analistas de plantão, "peidinho de véia".
Vencido, hoje peido tentando ser aceito socialmente ...
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